expresso.ptBruno Vieira Amaral - 17 set. 17:54

Contado ninguém acredita (I parte)

Contado ninguém acredita (I parte)

Uma crónica sobre o mundo tal como o desconhecemos, dos grandes temas da atualidade às questões insignificantes do quotidiano. Todas as quintas-feiras nos Exclusivos do Expresso

“O que é que lhe posso dizer? A história já a contei a mim mesma, mil vezes ou mais. O sofrimento, a dor… (abana a cabeça) não passam. É assim. Contá-la a estranhos? Dizem que ajuda. É capaz. Que sei eu. A única coisa que sei é sofrer, viver, sofrer, viver. Viver é fácil. Andar cá. Um dia depois do outro. Não pensar muito. Uma pessoa distrai-se com a lida da casa, a horta. A televisão? Não me faz companhia. Tenho-a ligada porque sim. Quando a desligo é igual. Vai dar tudo ao mesmo.

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Tenho uma irmã. Vive em França. Emigrou há muitos anos. Estava nas limpezas de uma fábrica de peças de automóvel. O marido trabalhava lá. Português. Da nossa terra. Depois empregou-se num restaurante. Ela. Ele não. Um dia tivemos uma zanga. No ano em que o meu pai morreu. Partilhas. Não deixou quase nada mas o que deixou chegou para as irmãs se zangarem, já viu como são as coisas? É sempre assim. Ligou-me depois quando o meu filho morreu. O primeiro. Não pôde cá vir. Na altura as coisas entre ela e o marido não andavam bem. Fizemos as pazes por telefone, mais ou menos. Quando vieram cá de férias nesse ano, aí é que fizemos as pazes. Quando nos vimos foi desabar o céu em cima de nós. Chorámos agarradas uma à outra, sei lá, mais de uma hora. Não dissemos nada. Até já não termos lágrimas. Só dor. As lágrimas acabam. A dor é que não.

(…)

Ela gostava muito daquele sobrinho. Dos outros também, mas com aquele era diferente. Era o mais velho, o meu Pedro, e foi o que ela acompanhou. Ainda vivia cá. Foi o meu primeiro filho, foi o primeiro sobrinho, o primeiro neto, já vê. E foi o primeiro a partir… mas o primeiro sobrinho… ela sempre foi muito dada às crianças. Eu nem por isso. Quando era nova, solteira, quer dizer. A minha irmã tinha aquela maneira, não sei dizer, um jeito. Nunca teve filhos. Um grande desgosto. Era ela. Nunca é o homem, não é verdade? Antigamente era assim. Era da mulher. Fosse de quem fosse a culpa… que não é culpa, é o que é, não tiveram filhos. E ela que era muito agarrada ao sobrinho ainda se apegou mais a ele.

(…)

Nunca. Tivemos a zanga, mas nunca a proibi de ver os sobrinhos quando vinha cá. Trazia-lhes tudo. Era doces, era brinquedos, era roupas, eu sei lá, tudo do bom e do melhor. Quando os tios estavam para chegar o meu Pedro já nem dormia, todo alvoroçado, e quando é que a tia chega, e quando é que a tia chega, e quantos dias faltam para a tia chegar. Era uma adoração, uma cegueira. E não era porque a tia lhe trazia coisas, que ele não era nada interesseiro. Era do coração. O sangue. O sangue puxa e não há nada a fazer. Uma adoração que eu nunca vi. E o tio, o meu cunhado, também era muito bom para ele, muito amigo. Há aquelas pessoas que não têm filhos, que não os podem ter, e ficam amargas, abrutalhadas com os filhos dos outros. Não é de lhes fazerem mal… é uma frieza. Uma mãe sente. Eles não. Quando estavam com os pequenos, via-se-lhes um amor nos olhos… um amor e uma tristeza. Desconsolo. Eu ficava de coração apertado com aquilo, mas só depois é que fizemos as pazes. Quando ele morreu. A morte separou-nos e a morte juntou-nos. É para ver como são as coisas. É o orgulho, casmurrice, o não querer dar parte de fraca, de não querer dar o braço a torcer. E para quê? Ao fim e ao cabo para quê? Casmurrices…

(…)

O meu Pedro era muito sentido. Ui. Não se lhe podia dizer nada. Um ralhete do pai e vinham-lhe logo as lágrimas aos olhos. Chorava por tudo e por nada aquele menino. No ano em que o meu Luís nasceu não fomos de férias por ele ser muito pequeno e eu deixei o Pedro ir com os tios de férias para o Algarve. Alugaram lá uma casa. Deixei-o ir sabe porquê? Porque ele sofreu muito com o nascimento do irmão. Até aí era tudo para ele e depois, já se sabe, o bijou era o outro, precisava de atenção e ele andava tristinho, coitadinho. O meu marido ainda disse que o melhor era ele ficar. Quanto mais depressa se habituasse melhor. Mas ele lá foi. É que eu na altura não andava bem. O parto foi difícil, se foi. Sofri muito e não me sentia capaz de tomar conta deles, nem da casa, nem de nada. Quem me valeu foi a minha mãe e a minha cunhada, a irmã do meu marido. A mim não me apetecia nada, nadinha. Não tinha reação e chorava, chorava, uma tolinha. O meu marido via-me naquele estado e não sabia o que fazer. Dizia-me para arrebitar, mas era o arrebitas. Era uma força… um peso que me prendia… eu bem queria levantar-me mas ora, adeus! Não havia maneira. Era escusado. E lá o deixámos ir com os tios.”

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