www.sabado.ptleitores@sabado.cofina.pt (Sábado) - 17 set. 17:53

Num mundo desfasado, desfasar horários por decreto é o maior dos desfasamentos

Num mundo desfasado, desfasar horários por decreto é o maior dos desfasamentos

Imaginem que, em vez de criarmos regras e medidas de segurança, tornávamos a frequência das aulas facultativa, possibilitando, a quem tem meios e recursos, o ensino à distância, sem o transformar em ensino em casa. - Opinião , Sábado.

Numa rádio, o desfasamento entre o real e o idealizado, com alunos amontoados à porta das escolas. Entre cartões, verificações e desinfecções, ganhou a chuva e a paciência de quem está, literalmente, obrigado a estes filmes. A escola é obrigatória, a presença (já) pode ser opcional.

Imaginem que, em vez de criarmos regras e medidas de segurança, tornávamos a frequência das aulas facultativa, possibilitando, a quem tem meios e recursos, o ensino à distância, sem o transformar em  ensino em casa. Se é certo que para algumas famílias a ideia pode parecer louca, outras haverá para quem faz mais sentido do que a pressa do horário a cumprir. Imaginem que, em vez de investir em marcações do espaço, acrílicos e máscaras, as escolas investiam em formação para os docentes, computadores de última geração, câmaras de filmar e microfones que permitiriam que cada professor desse a sua aula para uma sala vazia ou pela metade, apenas para quem prefere estar na escola. Seria um modelo semelhante ao das aulas em contexto real, mas sem panos que cobrem parte do  rosto, diminuem a oxigenação e fazem com que pareça que falamos com meias na boca. Se alguns professores já têm problemas de colocação de voz, articulação do discurso e dicção, imaginem de boca tapada. Vai ser um fartote. E não será de rir. 

No século XXI, pensar a escola é pensar um modelo de ensino genérico que permita criar um padrão e individualizado para se adaptar à forma como os mais novos aprendem. Por falta de opções, a resistência de muitos professores às ferramentas digitais e ao ensino à distância sofreu uma adaptação nunca imaginada e, perante a oportunidade de desmaterializar os processos, optámos por tapar o rosto, como  quem enfia a cabeça na areia para deixar a tempestade passar. Uma coisa é certa: estamos perante a tempestade perfeita que nos vai obrigar a mudar.

Numa outra rádio, o desfasamento era o dos horários, sobre o que podem, ou não, as empresas fazer. As empresas podem tudo, nós é que podemos não aceitar. Ou será ao contrário, neste desfasamento entre a excessiva oferta e a parca procura? Há candidatos a mais para empregos a menos e trabalho não queremos. Depois há os patos bravos que acham que mandam nisto tudo, os que passaram as passinhas do Algarve e repetem o padrão e, outros ainda, que jamais chegarão a jacaré porque não fazem ideia do que é ser assalariado. 

O motivo pelo qual queremos evitar a acumulação de pessoas faz sentido, mas não é novo: cidades sobrelotadas, autocarros com filas intermináveis, comboios transformados em latas de sardinha. A pandemia é a realidade actual. A poluição (sonora, visual, atmosférica) já nos acompanha há mais tempo, bem como o stress adicional que o trânsito, as filas, a confusão provoca em cada um de nós. A diferença foi notória durante o confinamento. Acrescentemos, à equação, o sono, e a sua influência na saúde individual, consequentemente, no sistema de saúde. Custa dinheiro. Impostos.

O corpo humano tem um relógio biológico que controla o ritmo circadiano, em sintonia com o meio ambiente (luminosidade, temperatura) para definir quando "devemos" dormir. Quando não dormimos, dormimos pouco ou não respeitamos o ritmo circadiano, o organismo não se regenera, diminuindo a nossa resistência à doença. Baralhámos isto tudo, dependentes da eletricidade e da luz artificial, para adormecermos e acordarmos independentemente da hora que o ritmo define para cada um de nós.

Eu sei, estão a dizer que sou maluca e que "lá podemos viver assim, a dormir/acordar quando apetece"?!… Não podemos, mas podemos ajustar horários. Vivemos em função do relógio, ignorando o nosso corpo e, por isso, adormecemos no comboio ou passamos pelas brasas no semáforo, não sem falar no café para aguentar (mais) uma reunião. E se, numa empresa, sendo possível para aquela função e tarefas, nos perguntassem a que horas queremos trabalhar? Conheço quem prefira começar ao meio-dia e acabar pelas oito da noite, como também sei de quem comece pelas sete da manhã para ter a tarde livre. E se andássemos todos desfasados e as lojas também, fechando à noite? O modelo não se pode aplicar a todos os sectores, mas na maior parte dos casos, é uma questão de vontade. 

Há  uns anos fiz parte de um grupo de trabalho para criar um novo paradigma na relação individualidade, família e trabalho. Lembro-me de ter proposto a criação de incentivos fiscais para empresas que implementassem horários de trabalho adequados às necessidades dos seus colaboradores, contribuindo para a mobilidade na cidade: horários diferenciados - desfasados,  portanto - nos sectores e empresas em que tal fosse possível; teletrabalho para diminuir o número de horas presenciais; e diminuição da pausa para almoço através da criação de cantinas ou espaços de refeição na empresa, permitindo a redução do horário de trabalho.

Segui a lógica de que colaboradores mais felizes trabalham com mais empenho, que os que descansam ficam menos vezes doentes e que a felicidade individual está na directa relação da nossa realização pessoal, profissional e familiar. Chegou a pandemia. Repentinamente, percebemos que isto de teletrabalho é mais simples do que parece, e que ficar em casa tem algumas vantagens. Apesar de, em alguns casos estarmos a dividir a mesa da sala, a trabalhar com o mais novo ao colo ou sermos interrompidos para ajudar o mais velho com os trabalhos da escola, o tempo antes passado nas deslocações nunca foi tão bem aproveitado: para nós ou para a família. Pode ser uma visão cor de rosa, bastante genérica, quem sabe idílica, mas há, nesta ideia, um ponto que talvez nos tenha escapado: não há apenas uma realidade, um modelo de trabalho ou um tipo de empresa pelo que a definição destes regimes por decreto tem tudo para correr mal. Como em todos os outros aspectos, a pandemia não é motivo para fazermos adaptações, mas a oportunidade para mudar, de vez, o que sempre esteve mal.
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