24.sapo.ptGuilherme Duarte - 17 set. 08:39

Blackface – Faz sentido? Quando? Como? Porquê?

Blackface – Faz sentido? Quando? Como? Porquê?

Uns dizem que é racismo, outros dizem que é normal. Afinal, um branco maquilhar-se de negro é sempre mau? É um assunto complicado....

O termo "blackface" não dirá muito a muita gente, mas tem estado cada vez mais na moda, especialmente no Twitter. Tem sido um assunto falado nos últimos anos e voltou à baila, a semana passada, devido ao humorista Marco Horácio. Para quem não sabe, blackface é termo usado sempre que alguém não negro se pinta ou se caracteriza de negro, seja qual for o intuito.

Nem sempre foi assim. Originalmente, o termo blackface foi criado para designar um certo tipo de caracterização exagerada com o objectivo de denegrir a raça negra, como Ricardo Araújo Pereira explicou ao ser questionado pelas vezes que já se tinha caracterizado de negro em sketches de humor. Disse também que já o tinha feito para imitar o Obama e que seria injusto não poder caracterizar-se de António Costa para o imitar num sketch. Eu tendo a concordar, mas a verdade é que o mundo é orgânico e agora o termo blackface evoluiu e é mais abrangente e utilizado por muita gente para caracterizar qualquer cara pálida pintada de escuro. O bronze do sol e do solário ainda estão a salvo, mas não por muito tempo.

Bem, mas o Marco Horácio caracterizou-se de africano no programa Você na TV para um momento de humor e o caldo entornou nas redes sociais, com várias acusações de blackface e de racismo. Não está em discussão se aquilo teve ou não piada até porque eu não sou o público do programa do Goucha e muito dificilmente haverá lá uma rubrica de humor que me faça rir, especialmente porque já não fumo ganza. A maioria dos comentários que vi foi “Vergonha”, “Isto devia ser proibido”, “O Marco Horácio não tem noção”, “Isto é racismo”. Vi poucos comentários a tentar explicar o porquê de aquilo ser errado e o que é que ao certo os ofendia, até porque desconfio que a maioria das pessoas indignadas com isto apenas o estão a ser porque viram que nos Estados Unidos da América dava créditos de boa pessoa estar ofendido com este tipo de coisas. Vivemos num mundo que prefere ensinar com o jornal a bater no focinho do cão do que com reforço positivo.

Eu não sei se o Marco Horácio é racista, não o conheço assim tão bem, mas já trabalhei com ele e nunca o ouvi dizer que os pretos eram todos para matar e para voltar para África. Não tenho de estar a defendê-lo, mas parece-me genuinamente boa pessoa, até boa pessoa demais para este meio do showbiz. Pode ser só um bom actor e ter uma suástica tatuada no fundo das costas, não sei que ainda não o vi nu. Sim, ainda, isto vai lá com o tempo. Agora, o Marco Horácio é alguém com passado manchado por racismo ou alguém que recorrentemente se pinta de preto para interpretar personagens inferiores, burras e estereotipadas para provocar o riso de racistas? Que eu saiba, não. Então, se calhar, é preciso ter calma. É um assunto complicado e com muita nuances em que percebo que se ceda à tentação de colocar tudo no mesmo saco, caso contrário teria de se perder muito tempo a analisar, argumentar e discutir a situação e as pessoas andam com pouco tempo entre cada tweet e comentário de insulto. Percebo que assim seja, mas isso acarreta danos colaterais e pessoas decentes serem catalogadas como racistas.

Claro que se o objectivo era estar caracterizado de King Africa, cantor da música Bomba, foi muito mal feito até porque o gajo é argentino e careca e não tem cabelo afro. Agora… é um cantor argentino que se intitula King Africa. Portanto, a apropriação cultural foi ele que a fez inicialmente. Podemos até dizer que apropriação que se apropria de apropriação, tem cem anos de perdão. Portanto, o Marco Horácio nunca pode ser condenado. Também é óbvio que não deixo de achar estranho que entre maquilhadores, directores de programa, apresentador, e o próprio Horácio, ninguém tenha parado e pensado: “Eh pá, isto é capaz de dar merda, não acham?”. Porque era mais que óbvio que nos dias de hoje iria dar, até porque quase tudo dá. Não no público do Você na TV, mas nas redes sociais. E aqui pode estar o problema: a dissonância cognitiva que temos enquanto sociedade em que os problemas e angústias de uns nada dizem aos outros que nem se lembram disso porque não sabem que existem.

Há ainda a questão de termos de ver para que público estamos a falar. Se o Marco Horácio fizesse aquele número num evento do SOS Racismo, dificilmente achariam que ele era racista e, quiçá, ninguém ficaria ofendido. Se ele o fizesse na festa de aniversário do Mário Machado, provavelmente os risos que obteria seriam mal-intencionados. Eu já fiz piadas ironicamente racistas em que nos comentários das redes sociais percebi que havia pessoas a rir porque perceberam a ironia, mas havia quem risse sem a ter percebido, mostrando que a burrice e o racismo andam de mãos dadas. Sempre que percebo isso faço questão de ir lá mostrar que a intenção da piada era outra, porque eu não quero fazer rir nem entreter burros racistas e vivo bem sem o dinheiro do bilhete deles. Essa gestão é sempre complicada de fazer e haverá sempre um ou outro energúmeno que vamos cativar sem sabermos bem porquê. Aposto que até o Seinfeld, comediante mais limpinho do mundo, terá um ou dois racistas a adorá-lo. Até terá, de certeza, um ou outro anti-semita apesar de ele ser judeu, tal como a Cinha Jardim disse que gostava do Quaresma apesar de ele ser da raça cigana. 

Claro que ainda haverá o verdadeiro blackface e o humor não está isento de críticas e de aprender e evoluir, mas o contexto e a intenção têm de ser tidos em conta. O contexto e a intenção são tudo. É como a famigerada N-Word inglesa, "nigger", ou na sua abreviatura "nigga". Quem disser essa palavra nos EUA é automaticamente cancelado e rotulado de racista, mesmo que seja um branco fã de um rapper enquanto canta as suas músicas pejadas da palavra proibida. Não faz sentido, há contextos que têm de ser tidos em conta porque o mundo não é todo preto e branco, "pun intended".

Voltando ao Você na TV, já lá foram racistas a sério, dizer coisas racistas sem ser a brincar, como o Mário Machado, a Maria Vieira, a Suzana Garcia e a Cinha Jardim anda a ver se consegue entrar nesse lote também. Já se sabe que de cada vez que se grita lobo e afinal é um Husky, o Pedro vai perdendo a credibilidade num assunto que é importante ser falado. Um branco fazer rastas já é racismo e apropriação cultural para muita gente. Nestes exageros nunca esteve a cura de nenhum problema.

Ainda assim, um caso mais óbvio e ridículo, a meu entender, foi o que aconteceu há uns anos com o programa “A tua cara não me é estranha”, na TVI. Um programa de imitações musicais onde os concorrentes eram caracterizados para parecerem quem estavam a imitar. Um homem podia interpretar uma mulher e vice-versa. Gerou-se polémica sempre que um concorrente branco interpretava um cantor ou cantora negra e o caracterizavam com pele escura. Se por um lado, pode ser complexo de definir o que é blackface, neste caso é muito fácil perceber o que não é blackface. Caracterizar alguém, num programa de imitações, cujo objectivo não é denegrir, mas sim, homenagear, nunca poderá ser blackface e quem acha isso é um bocado palerma.

Voltando ao humor: às vezes tem piada um homem vestido de mulher. Às vezes tem piada uma mulher vestida de homem. Às vezes tem piada um branco vestido de negro. Às vezes tem piada um negro vestido de branco. Às vezes tem e isso não quer dizer que seja racismo. O professor Chibanga tem mais piada se for caracterizado de negro e falar com sotaque angolano do que se fosse branco e falasse à Porto? Tem. Porquê? Não sei, mas tem. É porque há um fundo de preconceito que nos leva a rir ou é só porque estamos habituados mais a ver os curandeiros Bambo e Karamba do que o António e o Cajó e essa identificação nos leva a rir mais? Não sei, mas tendo a optar pela segunda. Há quem defenda que o humor nunca deve ridicularizar grupos de pessoas marginalizadas, defendem que deve sim atacar os poderosos, o chamado "punch up" em vez de "punch down". O problema é que as únicas pessoas que defendem isso e que a comédia nunca deve fazer piadas com quem é alvo de preconceito, ou não são humoristas, ou são humoristas com muita pouca piada e que tentam ser “woke” porque fazer rir é coisa para a qual não têm muito jeito.

Que há um problema de representatividade de negros nos media e no entretenimento e que isso potencia estes “blackfaces”? Claro que sim, mas isso resolve-se de outra forma, não é a gritar racismo. Eu como humorista não tenho caminhos proibidos. Nunca me caracterizei de negro porque sempre que nos meus sketches fazia sentido uma personagem negra, falámos com um actor negro para a interpretar. No entanto, se não tivesse conseguido alguém para fazer o papel, não podia pintar-me de preto e teria de mandar o sketch fora, mesmo que a punchline fosse declaradamente anti-racista? Não faz sentido. Ia comprar base de pele escura, obviamente.

Como humorista estou sempre disponível para ouvir o público e evoluir, mas tal como eu posso estar errado, também não é por alguém dizer que é ofensivo e que devia ser proibido que está correcto, já dizia o Ricky Gervais. Às vezes as coisas ofendem, é a vida. Se a vossa vida vos permite ficarem indignados com isto e perder tempo em linchamentos nas redes sociais, parabéns, fazem parte dos privilegiados que não têm mais com que se preocupar. Tal como eu, que estou aqui a perder tempo com este assunto.

Por fim, deixo um pedido a todos os negros que leiam isto, que é deixarem nos comentários o que acham sobre o assunto. Blackface é sempre inadmissível ou depende do contexto? É um tema relevante para quem é preto ou não, ou se é só um tema relevante para brancos armados em activistas do sofá? Quero ouvir o outro lado. Obrigado.

Para ver: Documentário The Social Dilemma, na Netflix

Para rir: Espectáculos de stand-up comedy em Lisboa, Albufeira, Leiria e Açores. Informações e bilhetes neste link.

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