ionline.sapo.ptionline.sapo.pt - 20 jan. 03:45

Rui Santos. “Abomino cartilheiros”

Rui Santos. “Abomino cartilheiros”

Não há adepto do futebol português que não o conheça. Gosta de tocar nas feridas dos três “grandes” por igual e até já foi agredido por dizer o que pensa

Tornou-se conhecido do grande público desde que criou o programa de autor “Tempo Extra”, na SIC Notícias, que chegou a ser o conteúdo mais visto da televisão por cabo em Portugal. Os tempos, hoje, são outros, com a proliferação dos comentadores/adeptos, um conceito que Rui Santos se vai esforçando por combater. Ninguém sabe nada da sua vida privada e assim deseja que continue: os holofotes são exclusivamente para o comentário desportivo. Escreve ininterruptamente na imprensa, especialmente desportiva, há 43 anos. “Quero morrer jornalista”, assume com um orgulho indisfarçável.

Nasceu em 1960, em Lisboa, filho de um militar e de uma…?

De um médico militar e de uma senhora cuja profissão era tratar dos filhos. Nunca teve uma atividade a não ser mulher de um senhor coronel e um senhor doutor.

Tinha irmãos?

Tinha uma irmã que faleceu no parto, num momento desgraçado. Salvou-se a minha sobrinha, mas ela infelizmente faleceu, nos Açores. Foi um momento dramático porque a minha irmã Lena era a luz da família, uma menina com uma luz extraordinária, que contrastava muito com a ordem, o método, a organização incutidos pelo meu pai. Ela sempre foi muito liberal em relação às ideias e aos comportamentos, e foi-se embora numa altura em que a ideia era fazer crescer a família. 

Tinha que idade nessa altura?

Tinha 26 anos, estava n’“A Bola” e lembro-me perfeitamente do dia em que soube da notícia. Nunca mais voltei aos Açores. A minha mãe é açoriana, tenho uma costela insular, mas nunca mais voltei. Mas tenho de voltar. Foi um dos momentos mais marcantes das nossas vidas.

E o percurso escolar, como foi?

O meu pai, como militar, fez as ditas comissões no Ultramar. A única vez que o acompanhámos como família foi em Angola, entre 1964 e 1966, numa dessas comissões. Em 1966 entrei na escola cá, no Externato Sá de Miranda, e aos nove anos fui para o Colégio Militar, de onde só saí em 1974. O 25 de Abril também foi a minha libertação. (risos)

Em Angola viveu onde?

Basicamente em Sá da Bandeira [atual Lubango], embora também tenha passado por Luanda. Isto serviu também para adquirir uma consciência das realidades e sobretudo enquadrar um bocadinho o que foi a vida do meu pai. Que foi muito importante na minha carreira: a minha ligação com o futebol começa exatamente com o facto de o meu pai adorar futebol. E comecei a gostar muito do jogo, sobretudo de jogar. E achava até que tinha algum jeito. A minha relação com o futebol nasce com a prática do futebol e com o gosto que o meu pai, irmão do Vítor Santos, me incutiu. Em 1974, quando ele volta do Ultramar, diz ao irmão, “Vítor, olha que o teu sobrinho tem um jeito imenso para escrever sobre futebol, tens de lhe dar uma oportunidade”, porque quando ele estava lá pedia-me para lhe escrever sobre as coisas que se iam passando aqui no futebol. E assim, a 11 de janeiro de 1976 fui fazer a cobertura do Barreirense-União de Montemor, da zona sul da ii divisão, porque naquele dia o correspondente do Barreiro adoeceu. Ele liga-me e diz: “Rui, estás preparado para trabalhar para ‘A Bola’?” Eu disse, “Claro que sim!”, e lá fui. Apanhei o barco, levava a minha BIC e o meu caderno de notas, e fui fazer o jogo. Correu bem, escrevi a pequena crónica em casa, levei-a para a Travessa da Queimada, entreguei-a ao revisor de texto, o Vasco Rocha (que já faleceu), e no outro dia a crónica foi publicada sem nenhum tipo de correção. A partir desse momento, nunca deixei de publicar. É um orgulho que tenho, porque me continuo a considerar um homem da escrita, e 43 anos volvidos escrevi sempre, não tive um momento de pausa, 90 por cento na área do futebol. É uma coisa que adoro e me vai acompanhar no resto do tempo, penso eu. 

Tinha 16 anos quando isso acontece. Deixou de estudar?

Tinha 15, só fiz 16 em junho. Não, continuei sempre a estudar. Depois do Colégio Militar fui para o Camões e depois entrei na Católica. Fui colaborador d’“A Bola” durante cinco anos, pago à peça. Era um miúdo a lidar com os monstros sagrados do jornalismo, Vítor Santos, Carlos Pinhão, Alfredo Farinha, Aurélio Márcio, Nuno Ferrari. O meu tio nunca me levou pela orelha ao quadro, foi uma aprendizagem por indução, pelo contacto. Entre 1976 e 1981 tive o privilégio de lidar com as coisas do jornalismo, até em tarefas como fechar jornais. Isso deu-me uma visão das dificuldades, perceber as diferenças: todas aquelas individualidades transportavam com elas maneiras de estar completamente diferentes, do ponto de vista político, do ponto de vista da visão sobre o desporto e o futebol… Com eles, aprendi de tudo um pouco. Eu acredito nas carreiras sustentadas. Dou muita importância aos jogadores e treinadores que passam por todos os escalões porque acho que essa é a melhor forma de sustentação profissional. E orgulho-me disso: não comecei no Estádio da Luz, no Estádio das Antas ou no Estádio José Alvalade; comecei nos pelados, nos infantis, fiz finais de iniciados, de juvenis, de distritais, da terceira, da segunda divisão… Para chegar a um jogo da i divisão, malhei muito! E isso orgulha-me. Usei muita picareta, escavei muito para encontrar uma pepita, algo mais valioso, mais luminoso. Fico grato a todos os que me proporcionaram esse crescimento.

Viveu muito o estigma de ser “o sobrinho de”?

Até uma determinada altura. Lembro-me de uma conversa com o meu tio numa altura em que me armei aos cucos – com 18, 19 anos já fazia páginas inteiras d’“A Bola” e já me achava capaz de alinhar no “dream team” da Queimada. Um dia pedi ao chefe Vítor Santos, meu tio, para falar com ele. “Eu acho que já podia fazer jogos da i divisão, já fiz o suficiente para merecer a confiança para fazer outras coisas…” E ele vira-se para mim e diz-me assim: “Mas tu tens noção do que é ‘A Bola’, das pessoas com quem trabalhas, de quem és? Enquanto fores o sobrinho do Vítor Santos, não vais a lado nenhum. Quando começarem a olhar para ti como o Rui Santos, isso significa que fizeste alguma coisa. Até lá, não és ninguém.”

Qual foi o seu primeiro jogo na i divisão?

Não me consigo lembrar. Como colaborador, nada, só cabinas, aquela reportagem no final dos jogos. Como era miúdo, alguns jogadores e treinadores achavam-me piada, gostavam de mim por ser novo e irreverente. Quando o FC Porto vinha a Lisboa, o Pedroto, em Alvalade ou na Luz, dizia-me: “Queres falar comigo?” Nessa altura, os jornalistas tinham mais contacto quer com os jogadores, quer com os treinadores – uma coisa que se perdeu, infelizmente –, e eu tive muita sorte: Jordão, Manuel Fernandes, Pedroto, Toni achavam-me piada e consegui arrancar algumas peças interessantes. Fiz muitas assembleias-gerais dos clubes grandes também. Passei por todas estas situações, comecei por uma cronicazinha da ii divisão, depois dei um saltinho para a reportagem, entrei na área da entrevista e depois na área da opinião, onde cheguei relativamente cedo. É um processo de maturação, de crescimento profissional, de experiências que nos dá depois o crédito para fazer a opinião. A partir de uma certa altura comecei a dar muita importância ao desenvolvimento dos jogadores através da base, apaixonei-me um bocado pela área da formação e do futebol jovem, que me permitiu acompanhar os estágios, ir fora ver jogos particulares e oficiais das seleções sub-15, sub-16, sub-17, sub-18, estive em campeonatos da Europa, campeonatos do Mundo… O meu primeiro jogo fora do país foi fazer as cabinas da final da Liga dos Campeões de 1979/80, entre o Hamburgo e o Nottingham Forest, apitado pelo António Garrido em Madrid, no Santiago Bernabéu. Fui à final da Liga dos Campeões, mas depois voltei a ter de fazer jogos dos miúdos, mas que me permitiram ir a quase todos os países da Europa: estive na Albânia, na Finlândia, no Europeu de juniores de 1982, numa equipa onde o Futre era suplente, e, dois anos depois, na ex-União Soviética, também com o Futre, com o Fernando Mendes, o Samuel, o Caetano do Boavista…

Começa no jornalismo numa escola consagrada, com o estigma de ser o sobrinho do Vítor Santos, mas também a não se encaixar completamente naquele estilo, a não ser propriamente um elemento da redação...

Não é bem assim. As gerações mais novas conhecem-me pelo meu boneco na televisão, mas muita gente não faz ideia nenhuma disto que acabámos de falar. Estive 26 anos na redação, no terreno. Vinte e seis anos é uma carreira! Era um bicho da redação! Privei-me de muitas coisas na juventude porque estava absolutamente apaixonado por aquilo que fazia, tinha uma pressão muito grande em cima de mim e queria demonstrar que era bom, e para isso tinha de ficar mais horas. A ideia que se criou do tipo que aparece na televisão de gravata e botões de punho, que parece que caiu ali de paraquedas e não tem nenhuma vivência do futebol e do jornalismo, é uma construção absolutamente falsa – que eu sei que existe, mas que tenho de desmontar, porque não corresponde à realidade. Fui colaborador, redator, subchefe de redação, chefe de redação e depois saí em 2002, com um capital de 26 anos de experiência no terreno. Aí, sem cunha nenhuma, sem pedido nenhum, comecei a ser convidado pelas televisões. Comentei o Mundial 2002 na RTP, estive nos jornais da TVI e começo a entrar na SIC, onde fiz muito comentário até ter um contrato.

Nota-se que tem uma preocupação constante de se afirmar como desalinhado – o facto de não se assumir como adepto de nenhum clube em particular, por exemplo. Porquê?

Porque investi muito. Hoje, a opinião é contaminada pelos interesses clubísticos e a sua defesa, e entendo que deve haver alguém que tenha o tal crédito construído em cima de uma carreira em que não fez nenhum tipo de concessão a nenhum clube em Portugal. Não sou um herói, não me acho a última coca-cola, mas investi muito no sentido de criar um espaço... sei que é muito difícil neste país, é difícil ser desalinhado quer dos clubes, quer das organizações partidárias. O sistema está construído nessa base e as pessoas estão habituadas a isso.

Mas hoje não tem os condicionalismos do passado. Quando estava n’“A Bola”, se tomasse uma posição contra determinado clube, sabia que esse clube ia fechar as portas ao jornal. Há uma certa, não direi prostituição, mas submissão…

Diria prostituição intelectual. E essa foi uma das razões por que saí d’“A Bola”. Não concebia que um jornal estivesse hipotecado – ou de perna aberta, para justificar o termo prostituição – ao poder dos clubes. Uma coisa é o diálogo, a convivência institucional; outra é a autonomia das partes. Os clubes têm os seus interesses e os jornais têm os deles. Eu saio d’“A Bola” em 2002 com uma cláusula contratual que me impedia de trabalhar em qualquer jornal desportivo nos dois ou três anos seguintes, e foi por essa razão que fui convidado pelo “Correio da Manhã” para escrever umas crónicas.

Alguma vez foi agredido num estádio?

Fui. Comecei a ter problemas muito cedo. Tive problemas em Portimão, num Portimonense-Sporting na década de 80, e não tive nada a ver com a história, foi apenas por ser o tipo d’“A Bola”. O final do jogo foi bastante acidentado, houve um lance de suposto penálti e outro onde o Meszaros levou um pontapé na boca e ficou a sangrar. Naquela altura, a cabina do visitante ficava em contacto com o público, e quando vejo o Meszaros a ser substituído, vou a correr ver se apanho qualquer coisa, se conseguia saber alguma coisa. Bato à porta da cabina, abrem a porta, entro (naquela altura era possível!) e tirei umas notas. Entretanto, o jogo acaba, ambiente a ferver, eu saio da cabina do Sporting e a malta está a sair do estádio e vê-me. Cria-se ali uma situação e passei um mau bocado, arrancaram--me um fio de ouro que tinha, puxaram-me pela camisa e não levei ali uma coça valente porque entretanto me puxaram para dentro da cabina do Portimonense.

Essa foi a situação mais grave?

Depois tive várias no Estádio das Antas, naquele tempo de uma coação inacreditável sobre os árbitros e os jornalistas. Escrevia coisas desalinhadas, lá está, e creio que com alguma coragem, e não gostavam. E depois havia aquela coisa do “jornalista de Lisboa, esse malandro”, e era complicado. Senti o que era a pressão, a coação. E quem esteve lá e viveu isso e não verbaliza é para não ter chatices nem problemas. Acabei por dar o flanco e abrir-me a uma série de chatices. Numa digressão do Farense em 1983, o Jorge Jesus era jogador do Farense, que tinha acabado de subir de divisão, o Meszaros era o guarda-redes, e os jornalistas dos vários jornais foram convidados para acompanhar o Farense do Fernando Barata. Chego lá e vejo que os jogadores estão todos cada um para seu lado, havia brasileiros, búlgaros, cabo-verdianos… Fui lá como jornalista, começo a ver aquela realidade e escrevo o que estou a ver. Foi complicadíssimo, fui ameaçado de tudo e mais alguma coisa! Quando chego à redação da Travessa da Queimada, a telefonista, ainda naquele sistema das cavilhas, diz-me “Olhe, tem aqui uma chamada”. Passou-me. “Rui, tudo bem? É só para te dizer que tudo o que escreveste corresponde à verdade e é para te dar um abraço de parabéns.” Quem estava do outro lado? Jorge Jesus. Normalmente defendo o Jorge Jesus e não é por causa disto, como é óbvio. Quando digo que o Jesus é um grandíssimo treinador e foi muito importante no Benfica, sobretudo na altura em que o Benfica vivia momentos complicados de descaracterização no futebol, sem identidade no futebol, ele chegou e transformou o futebol do Benfica, não tenho dúvida nenhuma disso! 

O futebol, antigamente, era amador em relação aos dias de hoje e havia mais corrupção. Concorda?

Sim. Houve uma fase do futebol em Portugal em que muita coisa aconteceu, muito jogo sujo, muito jogo resolvido fora das quatro linhas. Investigações não foram feitas, houve uma conivência clara com práticas ilícitas que resultaram em nada, para mal dos grandes pecados do futebol. Nunca vi ninguém a pagar a um árbitro, nunca vi, mas há coisas que nós percecionamos, que percebemos que não estão certas, não batem certo. E assisti a muitas arbitragens muito estranhas, disso não tenho dúvida nenhuma. Escutas telefónicas não servem para fazer prova, mas confirmam os indícios de corrupção, de compra de resultados, de tráfico de influências… Quem viveu essa fase sabe que existiu.

Está a falar de quê em concreto?

Do Apito Dourado.

Acha que o Boavista não teria sido campeão, por exemplo?

Acho que não. O Boavista foi, digamos, a amante do FC Porto que serviu para um determinado papel: alimentar o poder a norte. Teve os seus méritos, houve muita gente a fazer o seu trabalho honestamente. Não me esqueço das equipas do Manuel José e do futebol que praticava, e também do Jaime Pacheco. Mas a questão é as áreas do poder e quem as domina, e houve um tempo em que quem dominava as áreas do poder eram Pinto da Costa, Valentim Loureiro e os seus amigos. Tinham uma influência concreta ao nível da arbitragem, escolhiam os árbitros. Aliás, as escutas provam exatamente isso, os arranjinhos. O poder de um árbitro tem um peso enorme, um árbitro muito facilmente muda um jogo. E, nessa altura, isso acontecia imenso.

E acha que não continua a acontecer agora?

Agora há uma sofisticação maior em relação à forma como estas coisas acontecem.

Já não é por telefone…

Já não é por telefone. Ficou claro que foi por email… (risos)

Podem comparar-se os emails às escutas do Apito Dourado?

Não tenho dúvidas de que o Benfica tentou ripostar, em termos de aproveitar a sua dimensão de grande clube, para construir um modelo de influência que se pudesse projetar nas várias áreas do futebol. Independentemente da questão criminal, não tenho dúvida nenhuma de que houve um plano estratégico do Benfica para tomar conta do futebol português a nível das influências – que é aquilo que resulta da leitura dos emails, onde se veem práticas, no mínimo, pouco éticas. Outra coisa é o ser crime ou não – isso, as entidades competentes é que têm de decidir.

Mas em relação à qualidade do nosso futebol, considera que era, de facto, de um amadorismo total?

Total. Nós sempre tivemos excelentes jogadores. A qualidade do jogador português a título individual não é boa agora, é de sempre. Nós somos um fenómeno. No séc. xxi há uma portugalidade extraordinária em termos de influência naquilo que representa o nosso peso específico no futebol europeu e mundial que não pode ser desprezada. Tivemos (e temos) Cristiano Ronaldo, José Mourinho e Jorge Mendes a dominar, cada qual na sua área, o futebol europeu e mundial, a contaminar positivamente aquilo que é o futebol de hoje, e temos de valorizar isso.

Acha que Jorge Mendes trouxe mais-valias para o futebol?

Temos de separar as coisas. É um português, empresário de jogadores, que tem uma influência específica no mundo do futebol. Para mim, é nociva para o futebol: não consigo conceber que um empresário, face a um conjunto de operações que faz e de relações que estabelece, possa ter influência ao nível da própria gestão dos clubes. Deviam criar-se normas, quotas, limitação de entrada de jogadores agenciados por um determinado empresário em cada clube. O Jorge Mendes, hoje, com a carteira de jogadores que tem, com as influências que criou, com coisas que nem são muito transparentes no que respeita ao papel que tem nas SAD (se é acionista, se não é), se quiser, altera a verdade desportiva! Isto não é saudável, obviamente! Se ele faz uma parceria com o clube A, no plano de uma competição nacional, se ele quiser prejudicar, no plano das aquisições, o clube B ou C, prejudica! Temos uma situação em Portugal de uma parceria que tem sido bastante boa para o Benfica, que teve esta visão, boa para ambas as partes. Por exemplo: há jogadores que não vão para o Sporting ou para o FC Porto se o Jorge Mendes não quiser.

Mas é essa a parceria do Benfica com o Jorge Mendes?

Claro. Uma parceria que é assumida oficialmente. E não é ilegítima, mas tem um papel, faz parte do negócio. Falta regular o papel dos empresários, criar regras, que não existem.

Não receia, às tantas, ser um pouco a continuação do Octávio Machado, que diz que sabe e levanta insinuações mas, depois, não concretiza? Em 2015, por exemplo, considerou que a mão de Tonel no Sporting-Belenenses foi “intencional” e “deliberada”…

Num jogo de futebol, com a experiência que fui adquirindo, consigo perceber o que é típico e o que é atípico. Lembro-me, por exemplo, de um Leixões-FC Porto em que levantei uma questão que, na altura, suscitou imensos comentários sobre a não intervenção do guarda-redes Beto, que teve um comportamento atípico nesse jogo. E disse-o.

O FC Porto ganhou então ao Leixões com um frango do Beto, é isso?

Sim.

E, na época seguinte, o Beto foi jogar… para o FC Porto.

Exatamente.

Tem conhecimento, certamente, que era uma prática muito comum antigamente, nas últimas jornadas, um jogador dar um jeitinho e ser contratado depois…

As relações entre clubes, a política de empréstimos, todas essas situações num determinado tempo do futebol em Portugal… Houve uma altura em que o FC Porto colocava os treinadores onde queria. Para se tornar um clube verdadeiramente nacional fez algumas coisas dentro dessa vertente expansionista, que foi selecionar os clubes amigos no sentido de promover a evolução de determinados treinadores e jogadores, eventualmente com um desígnio qualquer. Houve coisas estranhas que aconteceram? Acho que é indiscutível.

E continuam a acontecer?

Em Portugal, vivemos debaixo de um vício que é: os dirigentes desportivos acham que o futebol se ganha fora das quatro linhas, não dentro.

E o Rui, acha que se ganha dentro ou fora?

Acho que ainda há uma percentagem grande de influência fora das quatro linhas. Há uma tentativa grande. Se depois tem efeitos… acho que sim mas, se calhar, já teve mais. Os árbitros, hoje, têm outra consciência, e também aumentou muito o escrutínio: o número de câmaras, as redes sociais, as novas tecnologias. Hoje, ninguém escapa ao escrutínio, e houve um tempo em que se escapava. Era tudo atrás do pano, no segredo dos deuses, maquinado fora dos holofotes. Desse ponto de vista, as coisas evoluíram bastante. Por isso é que há técnicas maiores de sofisticação no sentido de se tentar tirar partido de vantagens que não são propriamente muito éticas, no mínimo, como disse há pouco.

Já não gosta de futebol?

Do futebol em Portugal, não gosto muito, tenho de confessar. Adoro futebol! Mas é um futebol bem jogado, o jogo propriamente dito é a base da minha relação com o futebol. O futebol português não consegue fazer o aproveitamento dos jogadores que tem. Está mergulhado num conjunto de práticas mais do que suspeitas, porque há o convencimento histórico de que tudo se arranja atrás do pano e nos bastidores. O jogo das influências, o abuso de poder, tudo tem sido permitido e consentido pelas instâncias disciplinares. Todos os principais clubes em Portugal já concorreram para serem punidos com descida de divisão, se os regulamentos fossem aplicados com coragem. Não há essa coragem porque os órgãos disciplinares têm medo e não lhes são criadas condições para não terem medo. O Apito Dourado, o Caso Cardinal e tudo o que está expresso e vertido no caso dos emails, no e-toupeira e no Mala Ciao é uma vergonha para os protagonistas desses processos. No futebol português continua a pairar a sensação e a convicção de que, por maior que seja o ilícito (o abuso de influência, nos regulamentos disciplinares, é um ilícito grave), nada acontece. Isso mina a credibilidade das instituições e coloca o futebol português prisioneiro de si próprio. 

O jogo tem 90 minutos, no mínimo, e vocês têm programas em que gastam dois minutos ou menos a falar do jogo.

E sou contra isso! Mas o problema é que os próprios clubes e departamentos de comunicação promovem isso!

E no programa onde está sozinho? Também passa muito tempo a falar de arbitragens.

Mas as arbitragens fazem parte do futebol! Eu vejo o futebol na sua dimensão total. Quando entrei na televisão, acho que havia um défice de comentário objetivo e crítico em relação a um conjunto de coisas que aconteciam em Portugal e ninguém criticava e verbalizava. Acho que trouxe essa novidade. Hoje, as televisões optam por comentadores que são colocados lá pelos próprios clubes e que transportam com eles um discurso muito agressivo, onde se dizem algumas verdades em relação aos adversários, mas que são absolutamente propagandísticos e formatados.

No seu programa também, o “Playoff”?

O “Playoff” tem uma coisa que os outros não têm: há uma consciência crítica. Por exemplo, o Rodolfo [Reis] é capaz de criticar o FC Porto. É verdade que já tivemos situações difíceis, como o Manuel Fernandes, que era pago pelo Sporting. Mas nós, nas nossas conversas, tentamos estimular a crítica e a autocrítica. Estas figuras foram muito relevantes no futebol em Portugal, foram grandes jogadores, nalguns casos também treinadores, e são emblemáticas no futebol português: são estas figuras que têm de ajudar a transformar o futebol. E para isso não pode haver cartilhas!

Tem o célebre episódio da agressão que sofreu em 2008. Ficou com medo?

Não, fiquei com a noção de que vivemos tempos perigosos e que o futebol pode ser muito perigoso. Isso não me afastou de uma lógica de dizer aquilo que penso, mas talvez tenha entrado numa fase de maior maturidade. Face à quantidade de programas, de opiniões contaminadas, que dizem repetida e diariamente as coisas que os clubes mandam dizer, fica difícil nadar neste mar. Com mais boias ou menos. Parece que é tudo postiço, tudo artificial, e eu luto contra isso. Luto pela compreensão das pessoas que entendem que sobre o interesse clubístico há uma coisa que é fundamental perceber: aquilo que é fake, aquilo que é construído, aquilo que é propaganda e o que não é, que resulta da análise fria, preparada, equidistante, de alguém que fez os possíveis para poder anichar-se nessa posição de independência, de visão distanciada relativamente a esses interesses clubísticos. Foi para isso que trabalhei toda a vida.

Qual o volume de ameaças que tem recebido desde então?

Recebo, mas já nem ligo. Mas tenho alguns cuidados na minha vida. Houve uma altura em que as pessoas diziam “Ele diz estas coisas porque está lá no estúdio, fechado.” Mais uma falsa afirmação: nos momentos mais difíceis, eu dei sempre a cara.

Há quanto tempo não vai a um estádio?

Não vou porque não tenho necessidade de ir, porque na fase mais recente não me foi colocado profissionalmente um projeto que passasse por isso. Mas não tenho medo! Não sou inconsciente nem quero ser herói; de heróis está o cemitério cheio. Mas não tenho medo e nunca recusei. No estádio, não consigo aceder aos pormenores que a televisão me dá. Há pessoas que vão ao estádio para passar um bom bocado, às vezes até estão de costas para o relvado. Não tenho essa necessidade de ir ao estádio porque isso dá prazer: a mim, não me dá nenhum. E no plano da análise do jogo, o que é que a minha presença no estádio me dá que a televisão não dê? Dá um plano maior do campo e a possibilidade de interpretar do ponto de vista tático o que se está a passar naquela hora e meia. Mas a minha experiência também me ajuda a descodificar o jogo através da televisão com uma variável que, para mim, é muito importante: é que ao nível do detalhe e ao nível do pormenor, a televisão dá--me aquilo que os meus olhos não alcançam no estádio. Por isso, é uma questão de utilidade, não tem nada a ver com medos.

Acabou por não dizer há quanto tempo...

Há uns oito anos. Tenho dois programas semanais, um deles ao domingo que, em muitas circunstâncias, nem me permitia ir aos estádios. Não tenho nenhuma necessidade no plano profissional de ir aos estádios. Durante 26 anos, não fiz mais nada do que andar em estádios. Conheço campos que muita gente não conhece. Cheguei a um momento da minha vida em que posso fazer este tipo de gestão. Tem a ver com vários fatores, e não com menor gosto.

Está prisioneiro da personagem que criou?

Não! Tento é agir de acordo com o que acho que é melhor para mim. Evito determinados ambientes, isso assumo claramente. Tenho esses cuidados. Tenho uma vida muito controlada desse ponto de vista: não me inibo de ir ao cinema, aqui ou ali, mas dou muita importância à minha privacidade. Não me exponho, tento ter a minha vida privada fora dos holofotes porque não dei abertura a que isso acontecesse. Mas eu vivi muito, aos 18, 19 anos tinha garrafas de whisky nas boates! Vivi quando tinha de viver, mas isto tem tudo a ver com o meu posicionamento: pode ser um disparate, mas foi este o projeto de vida que construí e não tenho qualquer arrependimento.

Não tem problemas em poder cair no descrédito com algumas das previsões que faz e que depois acabam por se revelar completamente ao lado?

Às vezes tenho a noção de que posso construir um determinado cenário, em função de um contexto específico, e depois não acontecer. Mas também há muitas que tenho dito e que aconteceram. Quem é que falou do videoárbitro em Portugal pela primeira vez?

E está contente com o VAR?

Não estou contente porque acho que tem de evoluir para coisas mais objetivas. Agora, não tenho dúvidas nenhumas – e está à vista – de que o VAR veio para ficar. A FIFA, a própria UEFA – já está na Champions –, e lá está: tem a ver com a tal perceção que tinha de que o futebol, sobretudo ao nível da arbitragem, precisava de mais escrutínio, e achava que a videoarbitragem era uma forma de o ter. Fica mais difícil tomar decisões aleatórias, subjetivas, com a existência do VAR. O movimento pela verdade desportiva foi uma iniciativa minha com contributo de muitas figuras da sociedade portuguesa, e sobretudo através do “Tempo Extra”, que utilizei para tentar sensibilizar as pessoas a assinar uma petição e levá-la à Assembleia da República. Isto só foi possível porque fizemos tudo muito rapidamente, apanhámos o país desprevenido, não preparado para isto. Foi tudo muito rápido, e por isso é que colheu, ao ponto de levar comigo a Liga, a FPF, o Benfica, o Sporting, o Braga... Foi um movimento inclusivo que suscitou um debate na AR, e pouco tempo depois verificou-se que estava correto: o futebol precisava disso para, de alguma maneira, quebrar uma certa opacidade e aumentar os níveis de escrutínio. Independentemente de algumas situações que ainda não estão resolvidas – ainda vamos tendo algumas dificuldades porque o conselho de arbitragem decidiu colocar quatro maus árbitros na função específica de VAR. Duvido muito que, quando os árbitros são maus no campo, passem a ser bons na videoarbitragem! E depois há outras situações que vão levar algum tempo a resolver e que têm a ver com a própria formação dos videoárbitros, é preciso dar tempo. Mas não tenho dúvida nenhuma de que é uma grande vantagem, que o futebol é mais verdadeiro. Agora, não elimina algumas espertezas saloias fomentadas pelos departamentos de comunicação, que pegam em tudo e mais alguma coisa para intoxicar e desviar as atenções, que é o que temos mais no futebol em Portugal: ninguém assume as responsabilidades.

Ainda em relação às “insinuações” que por vezes faz, como o caso já falado do Tonel ou, mais recentemente, o levantar da dúvida sobre uma eventual motivação desportiva no assalto de que António Simões foi vítima em Cabo Verde…

Atenção: o que eu disse foi, e num contexto de factualidade: o António Simões é uma velha glória do futebol, se calhar a maior figura viva da história do Benfica. E, como se sabe, nos últimos tempos tem tido uma posição crítica em relação ao que se está a passar no Benfica. Estou muito à vontade porque estive no “Playoff” ao lado do Simões e protagonizei com ele um incidente que teve a ver com formas diferentes de ver o futebol e que culminaram com a saída dele do programa. Mas não confundo as coisas, e mesmo que esteja em divergência ou discordância com este ou aquele nesta ou aquela matéria, na minha qualidade de comentador profissional, se entendo que uma pessoa que já critiquei tem razão, não lhe vou tirar a razão. Essa é a minha postura: não confundo as questões pessoais com as questões profissionais. O que disse, à distância, foi que não queria acreditar que o Simões pudesse ter sido vítima não de um assalto comum, mas de um delito de opinião.

Mas isso é deitar gasolina na fogueira.

O Mário Machado vai à TVI e diz o que quer, o Presidente da República entra num programa em direto... Vivo num Portugal envolvido em singularidades: gasolina para a fogueira, não sei quem não deita... Um amigo meu estava lá e disse-me que não se falava noutra coisa se não nisso: a possibilidade de ele ter sido vítima de um assalto com motivações que não tinham a ver com o ato de roubar. Vale o que vale, mas foi-me dito por alguém que esteve lá nessa altura. Acho que é um bom serviço que se presta no sentido de dizer: não quero acreditar que isto tenha sido assim, esclareçam isto até às últimas consequências!

Nunca pensou assumir ou candidatar--se para um cargo num clube ou numa organização, como a Liga ou a FPF?

Tive abordagens indiretas, nunca formais, sobre as quais nunca houve avanços. Primeiro, porque quero morrer jornalista. Tenho no exercício desta profissão a ideia de que, se conseguir fazer toda a minha vida agarrado a esta profissão, tanto melhor. Não fecho as portas a outros projetos, mas para fazer alguma coisa no futebol tinha de ter poder. Sem poder, não vale a pena. Ser um presidente da FPF meramente decorativo, não, muito obrigado. Ser presidente da Liga é absolutamente impossível face ao sistema de eleição: eu, que sou crítico em relação à forma de estar dos clubes, os clubes não me vão querer na Liga! Para ser alguém no futebol tinham de me dar condições e poder para isso, e não vejo nenhuma hipótese de isso acontecer, é uma coisa completamente irrealista. Mas se alguém tivesse dinheiro para me pagar para eu fazer a defesa incondicional de um determinado clube, fosse quem fosse, eu defenderia melhor esses clubes do que alguns o estão a fazer neste momento. Disso tenho a certeza absoluta. Defenderia melhor o Benfica do que algumas pessoas fazem.

Como, por exemplo? O Pedro Guerra?

Os Guerras da vida, sim. Gostava de ter visto Luís Filipe Vieira num determinado momento a não permitir que alguém da estirpe de um Pedro Guerra fosse uma espécie de porta-voz do Benfica. Não me revejo nesse Benfica. Esse tipo de comunicação só prejudica o Benfica. Mas fico muito mais preocupado quando o próprio presidente do Benfica, de quem até tenho uma boa impressão no plano das relações, quando confrontado com a questão das cartilhas, diz: “Não sabia que existiam e até vou ver isso. Se existirem, é para acabar.” Isso faz parte de uma farsa comunicacional que existe muito no futebol e na qual não me revejo.

E em relação ao Sporting e ao FC Porto? Faria melhor que o Manuel Serrão?

O Manuel Serrão, não me parece que esteja condicionado a uma cartilha. Não vejo isso.
Então, o FC Porto até é o mais independente no meio disso tudo, não? Se tem o Rodolfo, o Manuel Serrão...
Sim, o FC Porto, nesse aspeto – não quer dizer que não haja momentos de partilha de informação e de manifestações cartilheiras –, é o menos organizado.

Este é um tema que tem sido associado maioritariamente ao Benfica.

O Sporting teve num determinado momento, no tempo do Bruno de Carvalho. Aliás, foi dito por ele: ele reuniu os comentadores do Sporting nesse sentido e pediu-lhes: “Digam o que têm a dizer em nome dos interesses do Sporting.” Isso é aprisionar o pensamento, é a pior coisa que o futebol tem. Eu disse uma vez que o futebol precisava de um “50 de Abril” e continuo a pensar isso: esta ideia de que os clubes têm de controlar tudo e todos – a AR, os tribunais, como é do conhecimento público e notório, controlar a comunicação social –, esta sede controleira...

Crê que existe uma futebolização do sistema judicial?

Há uma tentativa de captura dos diversos poderes pelo futebol. Os clubes habituaram-se a ser uma espécie de suprapoder e a tentar controlar tudo e todos. A questão do e-toupeira foi uma indecente intromissão naquilo que é o sistema judicial, disso não tenho dúvida nenhuma. Houve uma tentativa de extrair informações, não sei com que objetivos, mas existiu.

Ainda vai tendo dores de cabeça com Bruno de Carvalho, que chegou a prometer processá-lo judicialmente em mais do que uma ocasião?

Nunca me chegou nada. Essa dor de cabeça passa com uma aspirina. Habituei-me muito a relativizar essas situações. Em relação ao Bruno de Carvalho, desconfiei sempre de alguém que se tentou apropriar da ideia de patrono do VAR. Não tiro valor à influência que ele teve no sentido de pôr a ideia em prática, porque era presidente de um clube e eu não estou lá, tem instrumentos que eu não tenho. O papel que estas figuras dos clubes possam ter no sentido de alavancar ideias que eu considero positivas, extraordinário, excelente! Mas fiquei sempre muito desconfiado sobre a veracidade e a genuinidade das propostas dessa pessoa. Mas lamento, porque a parte boa do Bruno de Carvalho era necessária ao futebol. O futebol precisa de uma consciência crítica, mas no bom sentido.

Disse em entrevista à “Visão” em 2017: “Não tenho relações de grande proximidade com ninguém do futebol.” Ainda mantém essa posição?

As minhas fontes, preservo-as até ao momento em que colocam em causa as minhas opiniões. Uma coisa é tentar chegar aos factos, à verdade, através de uma relação que se estabelece com as fontes, que entendem dar esclarecimentos para a construção de uma determinada verdade. Outra coisa é quando essa fonte quer trocar a informação por uma opinião num determinado sentido. A partir desse momento, eu perco a fonte; para mim, a fonte seca. O mais importante é dar nota de que a minha opinião não é contaminada nem uma manifestação de propaganda, eu quero posicionar-me contra isso.

Não tem amigos no futebol?

Tenho consideração profissional por algumas pessoas.

Como Jorge Jesus, por exemplo?

Sim, e não escondo isso.

Mas é uma amizade?

Eu nunca almocei nem jantei com ele, nunca fui a casa dele nem ele à minha. Não sei se sou um bicho raro... Tenho algumas amizades relacionadas com futebol, mas construídas dentro do respeito pela atividade de cada um.

Janta e almoça com os seus colegas do “Playoff”?

Sim, muitas vezes. Damo-nos todos muito bem. Fiz entrevistas ao Rodolfo, ao Manuel Fernandes, ao João Alves... Essa é a parte boa disto: neste momento, estou sentado com um conjunto de figuras relevantes em Portugal com quem tive o prazer e o privilégio de trabalhar quando estavam em atividade, sobretudo como jogadores.

Ganha à jogador de futebol?

Não quero ser demasiado humilde. É muito difícil alguém manter-se na televisão, com um programa de autor, a fazer comentário num ambiente concorrencial de circo mediático-futebolístico. Nunca apareceram fórmulas replicadas em cima do modelo que foi sendo construído comigo na SIC. Os modelos que surgiram foram no sentido de alimentar debates-espetáculo, com figuras muitas das vezes colocadas nas televisões pelos clubes e que os adeptos sabem que transportam a ideia de defesa incondicional do clube e gostam disso. Portanto, a minha tarefa não é fácil do ponto de vista concorrencial. O “Tempo Extra” chegou a ser o programa mais visto da televisão por cabo em Portugal, foi um momento marcante. Hoje, apesar de me ter sempre afirmado como homem da imprensa, transformei-me – ou transformaram-me – numa figura do ambiente televisivo e da SIC em concreto. Era fácil para mim tirar mais partido dessas situações, mas não quero. As minhas condições salariais mantêm-se as mesmas desde 2002/03. Entendo que as direções e as administrações é que têm de fazer esse tipo de avaliação. A minha gratidão em relação àquilo que a SIC me deu, ajudando-me a transformar-me numa figura conhecida em termos daquilo que faço, é uma coisa que vou levar não para o Panteão (risos), mas seja para onde for quando partir. Sou grato. Sou um ativo da SIC, como muitos outros de enorme valia. Não sou estrela, mas também não quero pecar por excesso de humildade e não aceitar o ponto de vista daqueles que afirmam ter feito história na SIC. Não quer dizer que não tivesse algumas expetativas, algumas ambições, e tenho na minha cabeça alguns projetos que espero poder consumar na minha relação com a SIC.

Ou com outro canal qualquer...

Não me vejo fora da SIC. Sou um produto SIC, sinto-me lá bem, como um membro da família SIC, e não estou a ver que outros canais tenham a predisposição para me darem aquilo que me podia fazer sair da SIC. Vesti a camisola d’“A Bola” 26 anos, com um amor à camisola incondicional; e vesti a da SIC e, se tivesse aqui o emblema, beijava-o como os jogadores fazem. Aliás, este fenómeno Cristina Ferreira... considero-a um grande ativo da SIC que é preciso apoiar, estimular, porque aquilo que a Cristina Ferreira puder dar à SIC e a ela própria dará a toda a família SIC. Foi uma grande jogada, o programa tem como início uma boa ideia.

E o que achou da prestação de Luís Filipe Vieira?

Tinha alguma expetativa que lhe fossem colocadas algumas questões da atualidade do Benfica, mas percebi que o ambiente não era esse. Foi útil para o Luís Filipe Vieira, foi útil para a própria SIC, e temos de perceber: foi feito num programa de entretenimento, não uma entrevista convencional mas uma conversa em que se joga às cartas e em que houve uma conciliação de interesses.

Não acha que há o perigo de que a informação comece a ser veiculada como entretenimento, mesmo nos programas desportivos?

Mas isso já está em curso. Há uma coisa que, se calhar, não vou perdoar à minha classe: esvaziar o papel dos próprios jornalistas. É um pecado original que concorre com a própria exaustão do papel do jornalismo. Tudo é feito no sentido da substituição do jornalista: o jornalista não chega para falar do jogo, da arbitragem, da gestão. Se a especialização do jornalista for feita nessas áreas, deviam ser os próprios órgãos a credibilizarem essa atividade. Mas não, é permanentemente substituído. Por exemplo, nas entrevistas: já estamos a ver entrevistas feitas por cozinheiros, por apresentadoras... É péssimo. Às vezes com a própria conivência dos profissionais da comunicação.

Como vê os outros comentadores desportivos?

Tenho a sensação clara de que alguns jornalistas ditos independentes são fabricações dos próprios clubes. Alguns começaram a ser notados em estações televisivas de clube e acho que isso não é a melhor forma de começar a atividade. Há algumas vozes capturadas pelo regime clubístico – e aqui não estabeleço grandes diferenças. Tento sempre respeitar o posicionamento das pessoas, mas não me revejo muito.

Quanto tempo leva a preparar o programa?

Normalmente fecho-me à segunda-feira e à terça, reservo-as por completo, não atendo nada, não faço nada a não ser preparar o programa. Tudo o que acontece naquele programa é fruto de um trabalho de equipa, mas eu desenho o alinhamento e os temas que quero tratar. Todas as perguntas são legítimas dentro do alinhamento, que é construído com uma determinada lógica.

Trabalha, portanto, dois dias por semana! (risos)

Já percebi que isso é uma ideia feita, provavelmente achada entre gente da nossa mui invejosa classe, mas que não corresponde à verdade. Muita gente talvez não faça a mínima ideia do que implica preparar um programa semanal de análise. Trabalho todos os dias, inclusive aos fins de semana, claro, e, atenção, não me queixo. Há dias mais intensos e outros menos, mas fazer trabalho de análise de uma forma independente pressupõe muitas horas de pesquisa, de leitura, de procura de informações fora do contexto das fontes oficiais, de observação de jogos, de entendimento dos relatórios nas mais diversas áreas, etc. Esta questão do trabalho sem contar com a máquina comunicacional dos clubes, que distribui propaganda por todos os lados, pode parecer de somenos, mas constitui um detalhe muito importante. Na verdade, abomino cartilheiros. É a pior representação a que um ser humano se pode sujeitar, pelo que a isso corresponde em termos de indigência intelectual.

Qual é o futebol de que mais gosta?

Sobretudo o inglês.

Sempre foi um defensor de um treinador que quase nada ganhou no futebol sénior...

O Carlos Queiroz. Ele é um homem que pensa bem o futebol, tem bons conceitos. É bom treinador, mas é alguém que era útil do ponto de vista das políticas a adotar por uma federação. É um pensador do futebol.

José Mourinho ainda é um grande treinador?

Sim, olho para ele como um grandíssimo treinador. Não gosto do futebol dele, sou um adepto do futebol-espetáculo: correr riscos, não trancar as equipas. Organização, mas algum improviso e que os treinadores confiem na criatividade dos jogadores. O Mourinho é muito apologista do futebol robô, futebol maquinal.

Portanto, entre Mourinho e Jesus é mais Jesus.

Sim.

Ronaldo ou Messi?

Ronaldo. São os dois extraordinários jogadores, figuras de topo da história do futebol mundial, mas completamente diferentes. Acho que o Cristiano Ronaldo tem mais valências que o Messi. O Messi é um tubérculo do futebol, é um produto natural, um talento natural; o Cristiano Ronaldo é um talento construído por ele próprio, impôs a ele próprio uma exigência que concorreu para ser o jogador que é.

Que pensa de Pinto da Costa?

O melhor presidente de futebol em Portugal.

O que faz nos tempos livres?

Vou ao ginásio. Gosto muito de viajar, de conhecer. Escapo sempre daqui quando posso. Gosto muito de comer, de cozinhar, de ler aquilo que posso. De música, sem ser um expert. De assistir a debates políticos. De estar atualizado em relação às principais matérias que dizem respeito a cada um de nós. São gostos muito prosaicos. (risos)

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