expresso.ptIvan Krastev e Mark Leonard* - 31 mar. 18:08

Afinal a Europa não se fraturou por causa da Ucrânia

Afinal a Europa não se fraturou por causa da Ucrânia

Contra todas as expectativas, a união da Europa em torno da Ucrânia sobreviveu, mas será que consegue resistir às pressões que se avizinham?

Não é absurdo que Vladimir Putin – e, talvez, também Xi Jinping, que alegadamente estava a par dos planos de Moscovo – tenha pensado que a unidade da UE viria a ruir numa questão de dias, após a invasão russa da Ucrânia. Afinal, com a experiência da guerra do Iraque, a crise do Euro e a crise dos refugiados, houve precedentes de divisão, bem como o aparecimento de campos políticos rivais dentro da Europa. Enquanto a guerra era uma ameaça existencial para a Polónia e Estónia, mais próximas da fronteira ucraniana, era um conflito longínquo para aqueles que estavam em Portugal e Espanha. Parecia provável que houvesse uma fratura.

No entanto, um ano depois, parece que estas expectativas estavam erradas – e que os sinais de desunião europeia, tal como o sentimento antialemão que surgiu nas primeiras semanas da guerra, foram cenários de curta duração.

Uma nova sondagem do European Council on Foreign Relations (ECFR) mostra que no último ano as opiniões dos europeus convergiram, em vez de divergirem. A proposta de que a guerra entre a Rússia e a Ucrânia deveria terminar o mais depressa possível, mesmo que isso resultasse na cedência de território ucraniano a Moscovo, foi amplamente defendida em maio de 2022. Quase um ano depois, prevalece a ideia oposta – de que a Ucrânia deveria recuperar todo o seu território, mesmo que isso signifique um conflito mais prolongado.

Os motivos para esta alteração, bem como o aumento do apoio a Kiev, podem ser atribuídos a vários fatores. A estratégia de destruição maciça de Putin tem indignado moralmente a maioria dos europeus. As vitórias militares ucranianas no verão e no outono do ano passado convenceram muitos de que Kiev pode ganhar a guerra.

Um inverno não muito rigoroso e o sucesso da transição energética da UE aumentaram a sensação de que o bloco é mais forte do que muitos acreditavam. E a determinação de Joe Biden em fazer o que é preciso para não permitir que a Rússia ganhe a guerra ajudou a solidificar o ponto de vista europeu em relação à guerra.

Mas a guerra também trouxe uma reorientação política menos reconhecida, mas de importância crítica, na política interna de muitos países europeus. Sem rodeios, diga-se que a guerra reconciliou os nacionalistas com a ideia de uma UE mais forte e mais unida e, ao mesmo tempo, forçou muitos liberais a descobrir o poder mobilizador do nacionalismo anti-imperialista.

A primeira-ministra italiana, Giorgia Meloni, e o seu partido, Irmão de Itália, são os representantes mais poderosos da primeira tendência. Até há pouco tempo, a extrema-direita italiana via Bruxelas como a maior ameaça à soberania da Itália, com muitos dos seus membros não só eurocéticos, mas também a alimentar um apreço pró-Putin – simpatizaram com a ideia da saída do Euro e até mesmo da União Europeia. Contudo, hoje veem Bruxelas como um aliado valioso a defender a Itália de poderes autoritários, como a China e a Rússia, bem como de forças sem fronteiras, como a covid-19.

Do outro lado do espetro político, um grande número de forças pró-europeias e liberais na Europa tem sido inspirado pela luta da Ucrânia pela sobrevivência. Se olharmos para as desagregações dos eleitores de diferentes partidos, deparamo-nos com uma incrível convergência de nacionalistas e liberais, quando se trata da forma como estes veem a guerra.

Por exemplo, a percentagem de apoiantes do En Marche! de Macron, em França, que acreditam que uma vitória ucraniana pode trazer uma paz duradoura na Europa é, em larga medida, idêntica ao número de apoiantes do partido de direita Lei e Justiça (PiS) na Polónia. Os aliados dos Verdes alemães, um partido de tradição pacifista, também não estão muito longe.

Não menos interessante é também o facto de que alguns dos maiores apoiantes da luta ucraniana sejam os burocratas em Bruxelas. Perante a agressão militar nas fronteiras da UE, Ursula von Der Leyen acolheu a luta ucraniana e tem sido firme no seu apoio a Kiev. A presidente da Comissão Europeia tem insistido para que os fundos europeus sejam utilizados na compra de armas para Kiev e para que seja dada à Ucrânia uma perspetiva de adesão à UE. Bruxelas, que anteriormente se resguardava ao poder do nacionalismo civil, acolheu de imediato a ideia.

Esta assinalável manifestação de unidade não deve, porém, ser considerada um dado adquirido. A atual união pode facilmente ruir, seja devido a uma contraofensiva militar russa bem-sucedida, através de mais pressões sobre o custo de vida ou por meio de uma nova crise de refugiados. Com uma adesão e uma aproximação maiores entre a esquerda e a direita, o "plano de paz de 12 pontos" proposto pela China pode também resultar numa opinião pública a defender mais ideia do fim desta guerra o mais depressa possível, à custa das exigências territoriais da Ucrânia.

A referida união também pode ser destruída por uma mudança na política externa dos EUA. Donald Trump, que pretende candidatar-se, mais uma vez, à presidência, em 2024, culpa a administração Biden pela guerra de Putin. O seu candidato rival para essa posição, Ron DeSantis, também lançou dúvidas sobre qualquer compromisso a longo prazo para um presidente republicano, afirmando que Washington seria aconselhado a evitar ficar "mais enredado numa disputa territorial". A sua potencial disponibilidade para sacrificar a Ucrânia poderá causar uma grande mudança – não só na forma como os europeus veem o futuro da guerra, mas também na forma como veem o futuro da União Europeia. Seja Trump ou DeSantis a emergir como candidato presidencial, e se um deles se tornar o líder de uma aliança antiguerra, poderemos assistir a um rápido colapso do consenso em matéria de política externa que atualmente une os liberais e os nacionalistas.

* Ivan Krastev é presidente do Centro de Estratégias Liberais em Sófia e membro permanente do Instituto de Ciências Humanas IWM em Viena. É membro fundador do ECFR e membro do Conselho de Administração da ONG International Crisis Group
Mark Leonard é diretor fundador do European Council on Foreign Relations (ECFR), o primeiro grupo de reflexão pan-europeu. Entre os tópicos em que se destaca, estão a geopolítica e a geoeconomia, a China e a política e instituições da UE

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