jornaleconomico.ptFilipe Garcia - 31 mar. 01:09

Carta aos kanucos da minha terra | O Jornal Económico

Carta aos kanucos da minha terra | O Jornal Económico

Ironicamente, os estudos aqui referidos são produzidos pelas autoridades que sabem que a melhor solução passa por assegurar que estes miúdos recebem educaçã ...

Estacionado em Lisboa, por uns dias, sinto-me impulsionado a pensar sobre o direito ao sorriso dos kanucos (as crianças) da minha terra, onde retornei já fora da idade. Estaremos todos condenados a aprender a sorrir fora de Angola, questiono-me.

Hoje já não são (…) “os meninos à volta da fogueira / [que] vão aprender coisas de sonho e de verdade / [que] vão aprender como se ganha uma bandeira / [e que] vão saber o que custou a liberdade” (…) descritos nestes versos eternizados pela mestria poética de Manuel Rui (poeta angolano) e imortalizados, posteriormente, nas vozes de Rui Mingas e de Paulo de Carvalho.

São crianças que estão já a aprender, infelizmente, a mendigar por míseros kwanzas para se alimentarem, de forma a não sucumbirem ao longo da intensa jornada de mendicidade a que estão expostos na minha terra. Estes meninos, que sofrem um processo diário de desumanização, são uma espécie de condenados da terra, utilizando uma expressão cunhada por Francis Fanon para vaticinar uma categoria social sem possibilidade de existência durante o jugo colonial.

A construção de uma sociedade desigual e injusta, em termos económicos e sociais, conforme se verifica actualmente em Angola no período pós-independência, afecta severamente as crianças, retirando-lhes, sobretudo, o direito à infância, ao sorriso e aos sonhos coloridos e dourados, que são expressões de uma infância ingénua, que rima com a felicidade.

Esta ausência efectiva de infância conduz, consequentemente, à marginalização destas crianças. Estes meninos são desprezados pelas autoridades angolanas, por um lado, e, por outro, pelos partidos da oposição e pela sociedade civil, que assistem a este estado de coisas em silêncio ou esboçando críticas marginais, sem alterar o estado da situação. Esta postura das autoridades conduz à formação de uma bolsa de miúdos dispostos a enfrentar a vida de uma forma adulta e sem receio das consequências.

São crianças marginalizadas pela sorte da vida que só têm um caminho: encontrar uma lógica de sobrevivência sem atender aos meios. Esta realidade não se distancia da retratada no clássico filme brasileiro “A cidade de Deus”, onde surgem os garotos do Caixa Baixa, um conjunto de crianças que começam por se agregar para roubar e lutar contra os miúdos de outros bairros.

Os miúdos marginais, assim qualificados pelas autoridades policiais e pelos estudiosos em segurança, antes de serem descritos como marginais deveriam ser classificados como habitantes de zonas urbanas esquecidas pelas autoridades, vítimas de um processo de selecção, como se uns tivessem direito à vida e outros não. Porque os miúdos marginalizados são sempre provenientes de uma determinada geografia e de uma certa categoria social, onde não há serviços sociais adequados para projectar um futuro.

Ironicamente, os referidos estudos são produzidos pelas autoridades que sabem que a melhor solução passa por assegurar que estes miúdos recebem educação e conhecimento para que possam carregar nas suas pastas o sonho de um país melhor. Neste país dos sonhos, a governação deve assegurar o direito à utopia e ao sorriso dentro de um campo de possibilidades efectivas, não fazendo de cada ciclo governamental um adiamento eterno do nosso futuro. Porque o pior de uma má governação é roubar a inocência às crianças da minha terra.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.

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