jornaleconomico.ptFilipe Alves Luís Tavares Bravo - 31 mar. 01:18

As antigas raízes das novas tensões sociais na Europa | O Jornal Económico

As antigas raízes das novas tensões sociais na Europa | O Jornal Económico

A Europa precisa de uma transformação do sistema tradicional, uma que permita melhorar também as aspirações de médio prazo das famílias. Mas a produção de ...

“Não há perigo. O povo é sereno, ouçam. É apenas fumaça.”, Pinheiro de Azevedo, PM Portugal, manifestação apoio ao VI governo provisório, 9 de novembro 1975

A instabilidade social tem vindo a subir nos últimos meses na Europa, e dificilmente abrandará nos próximos meses. Com o epicentro em França, uma agressiva sequência de demonstrações populares de descontentamento relativamente ao aumento da idade da reforma representa a nota mais evidente do que pode vir a ser um risco elevado de tensões sociais, que pode vir a agravar-se durante o resto do ano, e enquanto perdurarem uma série de condições que acentuam as dificuldades das famílias de rendimentos médios, acentuam desigualdades sociais e agravam o sentimento imediato de revolta contra o sistema político de centro político.

Um prolongado conflito militar na Ucrânia poder trazer novos testes à tolerância democrática nos países europeus, à medida a mesma for afetando a cadeia de produção através dos elevados preços dos bens alimentares e de energia.

Por outro lado, a necessidade de controlar a subida dos preços levou as taxas de juro significativamente elevadas num curto espaço de tempo, que agora alimentam receios relativamente ao crescimento das economias, ou até mesmo à segurança do sistema financeiro, alimentando um espectro de incerteza  relativamente a estabilidade no emprego durante o os próximos doze meses.

Contudo, nestas novas tensões sociais que se vivem pelo continente, existem também raízes antigas, que estão ligadas em grande parte a uma desilusão popular com as instituições, e com a falta de capacidade dos europeus em obter aumento da sua qualidade de vida, pelo menos da mesma forma que foi conseguido em gerações anteriores. E que tem consequente aumento da expressão eleitoral do euroceticismo e populismo político um pouco por todo o velho continente. E mesmo Portugal, até agora um país dos brandos costumes, reúne algumas condições que devem ser tidas em consideração pelos governantes nos próximos trimestres.

A rebelião dos eleitores ganhou ímpeto com as várias crises sequenciais mundiais

A crise financeira de 2008 que espoletou uma enorme vaga de problemas no sistema financeiro europeu, e a intervenções em vários países da União Europeia, terá acentuado as falhas visíveis que já existiam na capacidade da Europa em ser um dinâmico espaço económico mundial, sobretudo quando comparado com a Ásia. A pandemia trouxe novos desafios, e agora o regresso dos conflitos militarizados – que promete criar uma nova cortina de ferro no mundo – trouxe o regresso das taxas elevadas de inflação e perca de rendimentos reais a um continente que cresce pouco, e mostra ainda poucos sinais palpáveis da desejada transição digital, que pode alimentar mais crescimento, e melhores salários.

É neste contexto de crises sequenciais dos últimos 15 anos que as sociedades europeias ocidentais estão a assistir a um crescimento assinalável dos movimentos de protesto e agitação cívica, uma tendência que, de acordo com alguns observadores , pode continuar a crescer, pelo menos durante 2023. A escalada na inflação aumentou os custos com energia, alimentos e de financiamento.

As populações, que foram capturadas nesta inesperada pressão financeira, agudizam agora latente sentimento de descontentamento com o sistema, através da agitação por todo os países, com a queda da confiança com a fé em governos e instituições na Europa em teste, num enquadramento político desafiante e polarizado, com os partidos mais eurocéticos e antissistema a beneficiarem deste descontentamento.

A tendência é , aliás, confirmada por alguns  estudos recentes de alguns observadores institucionais e empresariais. A seguradora Allianz , num relatório produzido em fevereiro deste ano sobre os riscos de greves, protestos e outras tensões civis e sociais , salienta que os riscos de agitação civil aumentaram em mais de 50% dos 198 países observados a nível mundial entre o segundo e o terceiro trimestre de 2022. Do universo considerado no relatório, destes 198 países, apenas em 42 , este risco diminuiu.

Mas a evidência mais estrutural do estudo é a confirmação uma tendência de aumento da instabilidade desde a crise financeira global há cerca de 15 anos. De acordo com os dados citados no relatório relativos ao Índice de Protesto Civil produzido pela consultora Verisk Maplecroft, foram também as manifestações violentas registaram a maior deterioração de todos os indicadores, piorando quase 50% desde 2008.

O mundo desenvolvido, sobretudo na Europa, tem vindo a ser mais agressivo nos protestos sociais

O fenómeno do aumento da instabilidade social é global, mas tem uma intensidade enorme na Europa. De acordo com os dados do Instituto Carnegie Endowment for International Peace, as manifestações de maior dimensão ocorreram em 2022 nos países do centro da União Europeia, com destaque para Espanha, França, Bélgica e Alemanha. Os catalisadores dos protestos têm estado essencialmente associados ao aumento do custo de vida, mas o descontentamento com as instituições (motivada por situações de abuso de poder e falta de transparência dos governantes) também tem vindo a mobilizar as populações.

Outra grande origem identificada, por detrás da escalada dos protestos populares, está associada ao aumento da polarização política, fator que está assente exatamente na erosão do centro político a nível global e europeu, com aumento consequente das ideologias em polos opostos – e consequentemente da polarização ideológica e partidária. E esta deterioração política não é imune ao agravamento das condições de desigualdade nos países desenvolvidos.

Na verdade, de acordo com os dados produzidos pelo Fundo Monetário Internacional sobre o aumento das tensões sociais, apesar de nas últimas três décadas se ter registado uma queda sustentada nestes indicadores a nível da comunidade global, no que diz respeito à desigualdade dentro dos países , a mesma avançou de forma generalizada, sendo que nas economias avançadas, mais de 90% dos países registou um aumento da desigualdade dentro da comunidade interna.

O progresso tecnológico, a globalização, ciclos de preços das matérias-primas são alguns dos fatores identificados como razões por detrás do aumento das desigualdades de rendimentos dentro dos países, e que por si têm motivado discursos mais inflamados e populistas a exigir mudanças radicais de políticas publicas.

Criar as reformas necessárias para um novo ciclo crescimento e manter a paz social

As raízes do descontentamento são por isso, em casos como a Europa, mais profundas que apenas a recente escalada dos preços. Há uma série de cicatrizes por sarar que são antigas, e que têm vindo a tornar-se mais evidentes, e que exigem reformas importantes no sistema tradicional europeu.

Existe, sem dúvida, um elevado cansaço social por parte dos cidadãos europeus, em virtude de vários fatores que trouxeram ao de cima a evidente necessidade de reformar o modelo europeu, para que este volte a ser percecionado como um indutor de esperança para o indivíduo para as suas aspirações na vida, e menos como um mecanismo distante e divorciado dos anseios das populações. Ou seja, é necessário reconstruir o pacto social com os europeus, e que envolve necessariamente uma série de reformas em variadas frentes.

A Europa precisa de uma transformação do sistema tradicional, uma que permita melhorar também as aspirações de médio prazo das famílias.  Mas a produção de reformas exige tempo e não está isenta de custos.  E esses custos são incorporados de forma aguda por populações que estão descontentes há muito tempo, seja nuns casos pelo sentimento de estagnação de mais de uma década nas suas vidas nas gerações mais novas, seja pelo sentimento de injustiça pela perda de direitos que consideravam adquiridos, como é caso das pensões nas gerações mais velhas.

A paz social é uma variável cada vez mais complexa de gerir, pois está bastante mais espartilhada num conjunto de conflituantes agendas que podem por elas próprias colocar gerações mais jovens , contra gerações mais velhas. E acima de tudo, proceder a reformas estruturais no sistema europeu que permita criar competitividade e crescimento suficiente para suportar as ambições e qualidade de vida das populações dos países europeus, e ao mesmo tempo que se mantém suporte confiança política resiliente, que evite o agudizar das tensões sociais na rua, e consequente materialização nas urnas dos sentimentos mais populistas, antissistema e eurocéticos.

Bottoms’ up: pode piorar antes de melhorar

O resto do ano ainda deverá ser marcado pelo agravamento das tensões. Na verdade, muitas das debilidades relativas à desigualdade e crescimento de médio prazo da União Europeia têm vindo a ser alvo de novas políticas e planos estratégicos para a próxima década, e que têm boa probabilidades de devolver crescimento aos países do velho continente, e que seja capaz de diminuir a desigualdade de rendimentos. Para além dos planos de transição energética e de digitalização, existe objetivos claros de erradicação de situações inaceitáveis em termos de desigualdade salarial, como é por exemplo, o caso da desigualdade salarial de género.

Mas estas medidas ainda vão levar tempo. No curto prazo, apenas uma redução significativa nos preços globais de alimentos e energia pode deter a tendência global negativa no risco de agitação civil. Os receios com crise económica sistémica e financeira permanecem, e o custo de vida das famílias deverá agravar-se mais ainda em 2023 do que no ano passado.

Existem várias variáveis que são incertas e difíceis. A manutenção do conflito militar na Ucrânia poderá alimentar uma nova crise energética mais para o ultimo trimestre do ano, sobretudo se o clima não ajudar. Um outono e inverno frios na Europa piorariam uma já séria crise de energia e custo de vida das populações. Igualmente, se por acaso tivermos uma situação anormal em termos de seca e recursos hídricos, a Europa pode sofrer com preços dos alimentos ainda mais elevados, e desencadear sérios protestos generalizados.

Por fim, é natural que as empresas se protejam relativamente a uma evidência de ciclo recessivo em perspetiva, o que pode ter impacte nas perspetivas imediatas do mercado de emprego, deixando os governos mais vulneráveis ​​e com maior dificuldade para tomar medidas para reduzir o risco de agitação civil.

Embora a pressão social já tenha aumentado para protestos por toda a Europa, os próximos seis meses poderão ser mais difíceis e perturbadores, sobretudo em países altamente endividados – e que começarão também a sentir o impacte de taxas de juro mais elevadas – onde a capacidade para a resposta fiscal necessária para proteger as famílias dos efeitos nocivos da inflação pode ser mais limitada. Para Portugal, o país dos brandos costumes e até ao momento uma exceção no campo dos protestos de rua europeus, isto deverá ser um dado a ter em conta durante os próximos trimestres do ano.

NewsItem [
pubDate=2023-03-31 02:18:06.0
, url=https://jornaleconomico.pt/noticias/as-antigas-raizes-das-novas-tensoes-sociais-na-europa-1012210
, host=jornaleconomico.pt
, wordCount=1700
, contentCount=1
, socialActionCount=0
, slug=2023_03_31_1612528606_as-antigas-raizes-das-novas-tensoes-sociais-na-europa-o-jornal-economico
, topics=[europa, opinião, rebelião, paz social, tensões sociais, populações, eleitores, manifestações, política, transição digital, economia, salários, ensaios, mundo desenvolvido, crise financeira de 2008, custo de vida]
, sections=[opiniao, economia, actualidade]
, score=0.000000]