visao.sapo.ptClara Cardoso - 28 nov. 13:11

Visão | Qatar do Alentejo

Visão | Qatar do Alentejo

De pouco nos vale pedir comentários aos governantes sobre os direitos humanos no Qatar, seguir hashtags e influencers, vestir a t-shirt da Amnistia, se assobiamos para o lado quando a escravatura joga em casa

Esta semana, a Polícia Judiciária deteve quarenta pessoas no Alentejo, por suspeita de envolvimento numa rede de escravatura. A megaoperação nos concelhos de Beja e Cuba segue o rasto dos crimes de tráfico humano, associação criminosa e branqueamento de capitais. Centenas de trabalhadores agrícolas estrangeiros foram resgatados de um esquema que os obrigava a trabalhar de sol a sol, em condições desumanas. Num momento em que o Mundial no Qatar faz correr tinta – e bem -, urge compreender que a escravatura não é um problema longínquo, circunscrito aos áridos feudos do emir. A afronta aos direitos humanos está aqui mesmo, em Beja, terrível Beja.

Tudo soa a uma história que já ouvimos. Há coisa de um ano, a opinião pública nacional viveu o costumeiro minuto de indignação perante a miséria dos trabalhadores migrantes em Odemira – os tais que colhem mirtilos para a nossa dose diária de antioxidantes. À época, escrevi sobre como o litoral alentejano só é idílico para alguns. Está visto que as planícies do interior também.

O esquema funciona assim: um capataz da rede criminosa recruta trabalhadores no estrangeiro – na sua maioria, provenientes da Roménia, Moldávia, Índia, Paquistão, Senegal, Argélia, Marrocos – prometendo bons salários na agricultura em Portugal. Por cá, vende a “empreitada” de trabalho a um proprietário rural português. Aliciados pelo desejo de melhorar a sua vida, os migrantes vêm para Portugal (muitas vezes, endividando-se para pagar a viagem) e são recebidos numa armadilha. A máfia apreende os passaportes, cativa os salários, e mantém estas pessoas a trabalhar em regime de escravidão nos campos portugueses, sob ameaça de violência física. Vivem subnutridos e em condições miseráveis. Os donos dos campos alegam não saber de nada. Entre os detidos na operação, está uma solicitadora portuguesa, suspeita de ajudar a forjar contratos de trabalho com empresas-fantasma. Estão os senhorios das casas alugadas à rede de tráfico. A colaboração do lado de cá é clara.

Nada disto é novidade para a Organização Internacional para as Migrações da ONU. Em entrevista à Lusa, o chefe da missão da OIM, Vasco Malta, adiantou que a organização está há dois anos a alertar para a existência destas redes no Alentejo. De acordo com a agência das Nações Unidas, a resposta está na regulação do processo migratório eficaz e transparente, da origem ao destino (Portugal, neste caso), que proteja os migrantes de cair nas mãos dos traficantes. Só uma migração regulada, feita “às claras”, protegerá os cidadãos destas teias criminosas. Não basta desmantelar as redes, a posteriori. O combate ao problema está na prevenção, na política migratória e na proteção laboral.

De pouco nos vale pedir comentários aos governantes sobre os direitos humanos no Qatar, seguir hashtags e influencers, vestir a t-shirt da Amnistia, se assobiamos para o lado quando a escravatura joga em casa. A defesa dos direitos fundamentais começa em Portugal, na garantia de proteção laboral e condições dignas para todos. Estamos longe disso. O desmantelamento de uma rede desta escala é sempre boa notícia, mas falta virar uma página na política: a da escravatura e da precariedade, que é a mesma. Página que, em boa verdade, nunca se virou no país – e em particular no Alentejo, terra rasa, toda coberta de pão. Sabemos que teremos sempre Cuba do Alentejo. Já estava na hora de abolir o Qatar do Alentejo.

MAIS ARTIGOS DESTE AUTOR:

+ Grande Alucinação

+ Amanhã vai ser outro dia

+ Não há fome que não dê em silêncio

Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.

NewsItem [
pubDate=2022-11-28 14:11:03.0
, url=https://visao.sapo.pt/opiniao/cafe-central/2022-11-28-qatar-do-alentejo/
, host=visao.sapo.pt
, wordCount=588
, contentCount=1
, socialActionCount=0
, slug=2022_11_28_1931512079_visao-qatar-do-alentejo
, topics=[opinião, café central]
, sections=[opiniao]
, score=0.000000]